O imaginário de Inverno era feito de frio, muito frio.
Íamos apanhar nabos prás vacas debaixo de chuva, ou vento que cortava, mesmo que tivesse a vantagem de não ser acompanhado por chuva. Lembro-me nos invernos mais rigorosos, termos que nos recorrer de uma picareta para apanhar os nabos.
O Inverno frio, muito frio, tinha fogueiras, também espigos de nabo, que também chamávamos grelos. Tinha na panela uma bucheira, ou uma chouriça que normalmente rebentava, ou as mães picavam com uma agulha para soltar tempero forte no caldo (nunca percebi muito bem isso de haver sopa e caldo).
Essa chouriça ou bucheira, era o conduto que acompanhava as batatas na refeição, quando não era só o azeite do Mondego que o “Ti Curto” vendia montado numa égua (ou cavalo, que já não sei precisar). Impressionavam-me os odres, pelo seu aspecto pouco higiénico, mas mais pelo preconceito de saber que eram feitos da pele de uma cabra.
O Inverno era feito de peças de caça que o meu pai (Monteiro de nome) apanhava com bastante frequência, era feito de míscaros e tartulhos que apanhávamos com certa mestria e saber, que nos era legado pelos mais velhos.
O Inverno era feito de matança do porco. Ahava aquilo muito agreste, sempre tomava o partido do porco, até ao momento em que se lhe retirava a “passarinha” e logo ali, às vezes no pátio se assava numa fogueira que fazíamos com o resto dos tojos com que os adultos queimavam o porco.
O Inverno era feito de noites longas sem luz nem televisão, era feito de garotos que íamos cedo prá cama a maior parte dos dias. Também era feito das histórias da avó Rainha.
O Inverno tinha tanto potencial.
Conseguimos em muito pouco tempo destruir quase tudo o que o Inverno nos trazia. Já não se apanham míscaros (ao que parece até já são meio venenosos), já não há caça (a não ser uma coisa estranha de vintenas de cães e homens ao Domingo e quinta feira, por ali aos tiros e de cartucheira vazia e cintura sem caça).
Ainda há nabos, mas quase não há vacas. As vacas amarelas do nosso imaginário, quase desapareceram, e os proprietários de vacas de campo já não lhes dão nabos.
Já não se mata o porco, nem se comem torresmos que fazem mal ao colesterol.
O Inverno é agora de noites curtas, televisões longas, levantares estremunhados, gente agitada, gente sem trabalho, campo abandonado.
O Inverno é cada vez mais sem chouriças, morcelas, bucheiras, buchos e grelos. O azeite não é do Mondego nem as cabras cedem a pele para odres.
As fogueiras são agora aquecimentos a gás natural ou gasóleo.
Falamos imenso com gente virtual na net, sobre histórias reais, que nada nos dizem passados dez segundos.
Agostinho da Silva (in Crónicas Diárias, Rádio Altitude, 25 Jan)
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3 comments:
Conheci os Invernos de que falas; os Invernos das geadas nos lameirões que nós fazíamos estalar; os Invernos em que o rio da minha aldeia inchava e perdia as águas pelos campos ao redor; lembro-me das mantanças do porco, no pátio da minha Mãe, ou de outros familiares (pois era coisa que se fazia amiúde e com a ajuda de todos) e de irmos até ao rio lavar as entranhas do animal... lembro-me de ter feito chouriças e morcelas e de as pôr no fumeiro e de lamber os dedos deliciada com a frigenada no próprio dia... Memórias trazem memórias... Obrigada, Amigo. :-)
As memórias do Agostinho fazem-me pensar nas minhas noites invernais passadas na aldeia de Malcata. Revejo-me na apanha dos nabos para as vacas e burros e agora realmente, já não há vacas amarelas nem aquelas a que chamavam "turinas", pretas e brancas. A minha mãe também picava as chouriças e morcelas, é que assim coziam e ficavam inteiras. E aqueles torresmos deitados na sertã e com o calor das brasas ficavam naquele "ponto" e em cima da fatia do pão...mesmo ao almoço ( pequeno almoço, dizem hoje)sabia pela vida.
Boa escrita, amigo, espero ler mais destes textos.
Costumo escrever para a Rádio Altitude Terças feiras (cada 15 dias) e para o Jornal Terras da Beira também cada 15 dias (intercaladas com a rádio)
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